quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Receita de viver

Eu gosto do aleatório, do fortuito, do acaso
De tudo o que faz da vida uma coisa assim, assim
Imprevisível, inconjeturável, um prato raso
De caldo até o fim

Sem saber onde vai transbordar o riso, a dor, o gozo
A angústia, a felicidade, o infortúnio; onde vai dar
Meu destino, essa nau sem rumo nesse mar vagoso
Constante a marulhar.

E assim é que se vive
O momento, feio ou lindo,
Em que o dado está rolando
E a roleta vai girando
E eu vou indo, indo, indo...

Tentativa

Eu queria
A Poesia
Que sintetizasse
Minha alegria
De ter você,
Seu beijo morno
Seu corpo em torno
Do meu, amor.

Mas não consigo
Por isso brigo
Com a Palavra,
O metro, a rima
E o que arrumo
Sem pé, sem prumo,
É só um verso
Quebrado, amor.

Rolling Stones

Você fica aí
Rolando essa pedra doida
Empurrando morro acima
Ganhando um palmo por dia

E perde da gravidade
Todo dia, todo o dia
Da gravidade das horas
Da gravidade robusta dos bigodes de Dalí

O que você pretende,
Tísico Sísifo?
Melhor dançar um rock.

Música & Vida

Uma canção de ninar
Para embalar o meu sono

Uma cantiga de roda
Para brincar nas manhãs

Um rock
Para alegrar minhas tardes

Bolero
Para aquecer minhas noites

Um réquiem
Para minha vida.

Soneto cínico

Amei demais, amiga, amei demais
Até quando não fui correspondido
Embora houvesse mesmo delinquido
Um pouco nos meus tempos de rapaz.

Mas, se traí, não fui um desleal
Mostrei a finitude das paixões
Cuidando não ferir os corações
De quem amei, gozei e coisa e tal.

Mais que prazer que eu tive, eu dei prazer
(E tive muito gozo nesta vida...)
E nunca duvidei: ser ou não ser

(A grande dúvida com que se lida)
Eu sempre fui - se não, fiz parecer -
E se não fui, eu sou, não é, querida?

Terra, Terra

Terra, Terra eu te amo
Teus prazeres...teus pesares...
Eu te adoro. E te proclamo
A rainha dos lugares

Eu te quero como abrigo
Do meu corpo, da minha alma
Para sempre. Estar contigo
É meu louro, minha palma.

Não quero saber de inferno,
Céu ou limbo ou purgatório
Quero a ti, planeta eterno
Pois tu és meu ostensório

O meu corpo sob a relva
Meu espírito nos vales
Nas montanhas, nesta selva
Misturando bens e males.

Terra, Terra amada minha
Não me deixes te deixar.
Eu não quero! Tu sozinha
É que és o meu lugar.

Para isso fomos feitos?

Para isso fomos feitos
Enterrar os nossos mortos?
Deixar saudades nos portos,
Ocupar todos os leitos?

Ser a teia, a aranha, a mosca
Desse enredo, dessa história,
Ser herói e ser escória
Da vida brilhante ou fosca?

Ser o alvo, ser a seta,
E também a trajetória,
Esquecimento, memória

Ser, a um tempo, plano e meta?
Lutar de todos os jeitos,
Para isso fomos feitos?

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

As tuas mãos

Tuas mãos
Que corriam ágeis a me desabotoar
E me percorriam o peito, o corpo todo
Despertando meus sentidos para o amor

Tuas mãos
Que em forma de cunhas me cravavam unhas
No dorso nu, laceravam pele, carne, vida
A exponenciar o gozo do amor

Tuas mãos
Que depois seguiam céleres para o piano
Jorrando músicas, notas serenas
A celebrar o jogo do amor.

As tuas mãos
Que percorrem frágeis a minha face
Buscando sulcos, acariciando rugas
E depois me alisam os cabelos brancos

As tuas mãos
Que em forma de conchas me aparam
Sopa a pingar da boca e, trêmulas, me servem chá
(E depois de mais um carinho voltam para as agulhas de tricô)

Ah, meu amor,
Há uma eternidade, há uma vida
Eu amo apaixonadamente
As tuas mãos.

Desejo

Eu te desejo como a um prato de comida,
Como um asmático deseja o próprio ar,
Ou como um náufrago perdido em alto-mar
Procura a bóia, a salvação da sua vida.

Eu te desejo assim como um vulcão latente
Pronto a eclodir a sua lava ardente em jorro,
Como um ladrão ferido, a implorar socorro,
Como um bebê novinho almeja o peito quente

Como o troar surdo das águas da represa
E a calmaria que antecede as tempestades
Eu te desejo como um tigre a sua presa

Ou como os reis desejam suas majestades.
O meu desejo, amor, a ti causa surpresa?
Desejo. Espero. E já não morro de saudades.

Suave é a tarde

Nesga de nuvem
Bem leve, leve
Formato breve
Paira no ar

Por trás o sol
Poente, belo
Sem um anelo
Morre no mar

Suave é a tarde
Cheirosa a brisa
Macia, a relva
Me faz sonhar.

Olhar

Vaza uma luz nos olhos teus
Que atravessa pântanos e vales
Passa uma mensagem, sem que fales
Nada que chegue aos ouvidos meus.

Mas meu coração entende tudo
O que meu olhar visa em teus olhos
Sem dificuldades, sem abrolhos,
Posso captar, mesmo que mudo,

Este teu sinal, de luz somente,
Que ilumina minha escuridão
E me faz ficar feliz, contente
Como um passarinho solto à mão.

Tempo

Um vago rumor
Trespassa a folhagem
É o vento
É o vento
Querendo criar imagem.

Um movimento brusco
Acontece de repente
É o vento
É o vento
Querendo fazer-se gente

Uma lufada nas nuvens
Descobre, expõe a lua
É o vento
É o vento
Querendo deixar-me nua

Um sopro quente, abafado
Percorre toda a avenida
É o vento
É o vento
Querendo levar-me a vida

Meu pai

Na minha paisagem há um rio
Que corre manso entre margens verdes
E barrancadas

Inclinado no barranco um ingazeiro
Molha sua sombra na água fria

Mais adiante
Uma velha ponte de madeira
E sob ela
Um homem isca o anzol do seu menino

"Oh que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida..."

Dois pontos


Dois pontos,
Um sobre o outro,
Lá vem palavra:

-Eu te amo
-Eu te odeio

Não importa.
O que anseio
É... palavra.